Oficina História e Memória do Butantã

Além de área delimitada, um território é composto por fluxos de vida que se dão pela interação de pessoas entre si e com os objetos ali presentes – alguns naturais e outros produzidos por diversas mãos. Ao longo da história, essas interações criam movimentos de circulação de corpos, afetos, ideias e produtos de muitos tipos, que se conectam na tessitura de redes de trocas sociais.

Uma das propostas centrais do projeto “Cartografia interdisciplinar no território do Butantã: fortalecimento de redes solidárias a partir do Ponto de Economia Solidária e Cultura da região” foi apoiar o fortalecimento de redes solidárias que se opõem aos processos de fragmentação e desenraizamento da comunidade. Tomando essa direção, uma das ações teve como foco a construção partilhada da memória coletiva, chamando a comunidade para valorizar suas histórias, reforçar sentimentos de pertencimento e lutar contra o esquecimento que muitas vezes se impõe pelas versões oficiais.

Para isso, começamos por conhecer a rede de contatos e os parceiros do Ponto de Economia Solidária e Cultura do Butantã e dos integrantes do nosso projeto. Buscamos encontrar, entre tantas parcerias comprometidas com a produção da vida coletiva nesse território, aquelas experiências nas quais a constituição e a formalização da memória apoiaram a construção de conexões sociais e o fortalecimento de identidades coletivas. Encontramos muitas delas associadas a diferentes domínios da vida social, como a educação, a saúde, a cultura, a economia solidária e a proteção do meio ambiente.

Apostando na criação de pontos de contato entre as memórias e experiências trazidas por diferentes atores sociais enquanto forma de produzir sentidos comuns – tão necessários à formação de redes e à preservação das ações coletivas – reunimos essas iniciativas em diálogo entre si e com a comunidade. Assim, em roda de conversa vivenciamos a troca de experiências que traziam consigo as histórias e as construções da memórias do Butantã. Além do diálogo entre os expositores, confiamos que o encontro abriria espaço para novas articulações e oportunidades de intensificar as redes solidárias nas quais o Ponto é um dos agentes.

A Roda de Conversa “História e Memória do Butantã” foi realizada no Ponto de Economia Solidária e Cultura do Butantã no dia 15/02/2020, das 10h às 13h, com  a participação de oito convidados expositores e participantes da comunidade. As fotos registram algumas cenas desse encontro. Contamos com  a moderação do Prof. Dr. Bernardo Parodi Svartman – do Instituto de Psicologia da USP – mediando as apresentações dos convidados e as manifestações dos demais participantes da roda.

Um território cheio de história

Começamos com Andréa Leão, que é historiadora e professora da EMEF Professora Maria Alice Borges Ghion e compartilhou conosco a experiência do Centro de Memória COHAB Raposo Tavares. O projeto teve início com uma experiência piloto em 2012 e atualmente envolve a participação de alunos e professores da escola municipal e de toda a comunidade que vive ali. Seu objetivo tem sido contribuir para a visibilidade e valorização da história dessa comunidade e de seus habitantes. Ele acontece principalmente por meio de encontros e de relações que aproximam estudantes e moradores locais, como apresenta Andréa:

 “Nesse processo a gente vai nas casas, vai nos comércios, faz entrevistas, recolhe as memórias, toma chá na casa das pessoas… e os moradores também vão até a escola, fazendo uma ponte entre os dois”.

A criação e organização de um acervo fotográfico e documental faz parte do projeto, que também promove atividades para reunir a comunidade. Foi assim que o Centro de Memória nasceu em 2012, cresceu, e em 2017 conquistou um novo espaço dentro da escola para a exposição do acervo e o desenvolvimento de suas atividades. Andréa retrata  a riqueza histórica de um projeto que ainda tem muito fôlego:

“A primeira moradora que fui fazer entrevista junto com os alunos foi a primeira líder comunitária da comunidade. Ela foi a primeira pessoa e abriu um leque de coisas… E eu comecei a entender que aquele espaço tinha muita história, tinha muita vida e que a micro história fazia muito sentido ali.”

Memória, mapas e afetos

Na sequência, foi partindo da narrativa de alguns projetos seus que tinham por base a intenção de aumentar a aproximação e percepção das pessoas em relação aos espaços urbanos que o Prof. Dr. Nuno de Azevedo Fonseca – da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – nos falou da experiência do Projeto Estação Butantã, realizado a partir de 2006 em parceria com professores da EMEF Desembargador Amorim Lima.

O projeto foi inspirado em duas iniciativas anteriores que uniram o trabalho de mapeamento do território ao levantamento de histórias e experiências locais. E se articulou à sua vivência pessoal no território do Butantã, como ele conta:

“Me mudei para o Butantã em 2005. Estava em plena construção da Estação do metrô. Minha filha entrou no Amorim Lima em 2006. Daí fui propor que a gente fizesse alguma oficina de conhecimento da cidade (…) A ideia do projeto era tirar os alunos da escola e levá-los para o bairro e pra cidade, e, simultaneamente, abrir a escola para o bairro, para que as pessoas do bairro entrassem na escola e que a escola fosse um centro de referência com informações sobre o bairro”.

Assim, o Projeto Estação Butantã aconteceu a partir do envolvimento de alunos e  professores da escola municipal, em proposta que uniu a exploração, a apreciação e o registro do bairro e da cidade de São Paulo, ao mesmo tempo em que atraiu a comunidade para as atividades da escola. Naquele momento, a estação Butantã do metrô estava sendo construída e despertava reflexões sobre as mudanças que iria trazer ao Butantã, o que fomentou observações mais atentas e discussões  importantes sobre a história do bairro.

Ao longo do projeto, diz o professor, foram adotadas diferentes estratégias para promover a aproximação dos estudantes com a história e a vida no Butantã. Elas tiveram início com a exposição de um grande mural que expunha quatro períodos da história do bairro (1930, 1954, 1972 e 2004). Nesse encontro, alunos e professores também relataram suas vivências nesse território, enriquecendo com detalhes, memórias e afetos os mapas históricos trazidos pelo professor Nuno.

As visitas das crianças a espaços comunitários, como à USP e a outras localidades da cidade, também foram momentos marcantes do projeto. Abriu oportunidades para uma experiência diferente de conhecimento e abriu horizontes. Nessas visitas foram feitos registros em forma de desenho, a partir da observação e da criatividade das crianças para expressar as casas, ruas, espaços comunitários e também o processo de construção e reconstrução do bairro e da cidade.

Ousadia: educação e cultura nas periferias

“Anísio Teixeira, Florestan Fernandes e Paulo Freire são as inspirações desse projeto”, diz Anna Cecília Simões. Ela é educadora da rede municipal de ensino de São Paulo e retomou a história do Butantã enfocando o processo de discussão e mobilização que levou à implantação dos CEUs (Centros Educacionais Unificados) –  o CEU Butantã e o CEU Uirapuru. Apresentando a história da criação dessas organizações no contexto municipal, com início na gestão da Prefeita Marta Suplicy (2001-2004), realçou o fato de que os CEUs representam a ousadia de levar às periferias os componentes da educação e da cultura que foram, social e historicamente, acessíveis apenas às classes mais privilegiadas economicamente.

“Quem disse que o Butantã não tem a sua periferia?” instiga Anna Cecília. “Estamos falando aqui de várias periferias. Quando falamos de Raposo Tavares, é periferia da zona oeste. Quando falamos da inserção do CEU Butantã no meio de cinco comunidades, como Sapé e 1010, por exemplo, é periferia. É a periferia da exclusão social que mapeou a localização dos CEUs na cidade de São Paulo.”

Sua longa e expressiva vivência dessa história – como militante, educadora, gestora do CEU Butantã e supervisora do CEU Uirapuru – conduziu a narrativa que nos permitiu conhecer um pouco do processo de reflexão, de trabalho com as comunidades que habitam as periferias e dos desafios envolvidos no projeto de criação dos CEUs no município de São Paulo, que hoje conta com 46 unidades situadas em “bolsões de exclusão”, conforme conta Anna Cecília.

Um território estratégico

Márcio Rufino veio de longe para nos contar sobre o que pode conhecer da história do Butantã por meio de sua tese de doutorado, que também foi publicada em forma de livro.  Ele, que é geógrafo e atualmente professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), realizou seus estudos enquanto morava no bairro e os concluiu em 2013. Pesquisar os significados da Operação Urbana Consorciada Vila Sônia (OUCVS), bem como as razões que sustentavam o uso dessa que é uma legislação de exceção no planejamento urbano, o levou a investigar como o Butantã se constituiu histórica e sociopoliticamente. A OUCVS, prevista no Plano Diretor Estratégico de São Paulo em 2002, gerou na comunidade um intenso processo de discussão, mobilização e interlocução com o poder público. Ao final, a OUCVS foi suspensa.

Mesmo contando com poucas fontes históricas disponíveis, os estudos de Márcio foram revelando a natureza estratégica da região, tendo em vista a posição do Butantã no mapa da cidade, suas características geomorfológicas e hidrográficas – com diversos rios cortando seu espaço – e as relações sociais que se criaram em torno do fato de ele ser um território de ligação com a zona oeste do Estado de São Paulo. Conforme nos contou Márcio:

“(…) populações de vários lugares e vários contextos socioeconômicos foram habitando, morando, loteando essas terras. Mas é muito interessante que a quantidade de disputas pelas terras do Butantã, de certo modo, nos mostram que essas terras tinham alguma qualidade, alguma possibilidade que havia para ser explorada no futuro.”

Ele também destacou pontos centrais da história de urbanização do Butantã   trazendo desde a perspectiva dos tropeiros do período colonial e a origem da criação dos caminhos terrestres que guardam relação com os fluxos viários atuais, até os processos mais recentes de urbanização. Esses processos, já no século 20, adotaram um paradigma muito bem representado pela Companhia City, que ao adquirir terrenos no Butantã, assim como fazia em outros pontos do município, estimulou a valorização imobiliária dos terrenos e a consequente  expulsão de antigos moradores.

Márcio concluiu afirmando que pesquisar caminhos e processos de urbanização nos revela muito da sociedade que somos. E nos lembrou que na história da modernização do Brasil os processos de colonização dos territórios interiores teve caráter elitista e racista. Recordar e analisar esse fato é fundamental na elaboração de estratégias de luta contra seus efeitos e na elaboração de políticas de reparação.

Cultura é memória viva

Sônia Império Hamburger é diretora da Associação Cultural do Morro do Querosene, representante da sociedade civil em conselhos municipais (Conselho Participativo Municipal-CPM, Conselho Municipal do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável-CADES, Conselho Gestor do Ponto e participante da Rede Butantã.

Ela iniciou destacando o papel da associação na preservação da memória do Morro do Querosene e também o de outros colegas, dos movimentos populares, que contam e produzem histórias que são as memórias desse território. Nesse sentido, abordou a importância das construções cotidianas que criam uma cultura real, que ocupa ruas e espaços e se produz nas várias relações que constituem o território, como aquelas que se dão nas relações de vizinhança.  Esse é um pensamento que se diferencia do que costuma ser atribuído ao conceito de cultura no discurso institucional. Defendeu que a cultura “é memória viva” e que a cultura real deve ser fortalecida para que tenhamos uma sociedade mais humana.

“Uma coisa bastante interessante que o Morro do Querosene tem, e é conhecido e valorizado por isso, é essa proposta tão ousada de ocupar as ruas com cultura”

Sônia também nos falou de sua experiência como representante da sociedade civil nos conselhos, realçando seu ponto de vista: a necessidade de que essa participação seja articulada à uma experiência vivida na cultura e nas lutas do território, e na disposição de criar redes, trocar experiências e fortalecer os processos locais. Nos conselhos, nos quais os desafios ainda são muitos, como o de se fazer ouvido e ampliar os espaços de participação da sociedade civil, cabe uma atuação que compreenda que essa é uma via de concorrência pelos recursos e riquezas que deveriam ser de todos, conclui Sônia.

Participação popular, cultura  e ecologia

Morador do Butantã, Pedro Comuna é  historiador, professor do Ensino Fundamental I e diretor executivo da Associação Nacional Reggae. Pedro nos falou da importância da articulação da história, da memória e da oralidade para a construção e resgate da memória coletiva.

“A memória é o próprio motor da humanidade. A história por si só não dá conta de contar o que realmente aconteceu. A história é uma perspectiva do que aconteceu, a partir de uma narrativa de determinados movimentos históricos. Pra gente poder fazer um resgate da nossa ancestralidade, (…), é preciso articular a história, a memória e a oralidade que são coisas muito antigas e tem o seu valor e importância para sermos o que a gente é.”

Pedro explicou que a Associação Nacional Reggae no Butantã é uma instituição sem fins lucrativos que tem o objetivo de desenvolver, difundir e resgatar a cultura reggae e a cultura rastafari, bem como os temas ligados a essas culturas. Dentre as várias ações realizadas pela Associação, ele nos contou sobre o engajamento na luta pela preservação da área do Peabirú e no movimento Parque Chácara do Jóquei, no qual atualmente é membro do Conselho Gestor.

Outra frente de luta atual é o projeto de reestruturação do Viveiro 2, que foi apresentado à Subprefeitura do Butantã. Pretende-se restaurar o viveiro com participação popular e ocupar a área verde de 18 mil m², que atualmente é alvo de especulação imobiliária, com atividades culturais e relacionadas ao meio ambiente. Nesse processo, além dos mutirões para retirada de entulho, resgate de animais abandonados e reforma da sede do viveiro, foram realizadas atividades gratuitas de música, capoeira e oficinas de construção de tambores e de fossas ecológicas, entre outras. Ele nos contou também que, articulando a discussão sobre gênero na cultura reggae e rastafari, lá foi realizada a I Feira Agroecológica e Cultural de Mulheres no Butantã, em parceria com a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP-USP) e as iniciativas de economia solidária.

Incubando projetos cooperativos

A educadora popular Ana Luzia Laporte  e o geógrafo e coordenador da ITCP-USP, Paolo Marti Grasson Pereira de Souza Viola, nos contaram a história da ITCP-USP indicando as etapas e as formas de relação com o território do Butantã. Ana Luzia, que faz parte do Núcleo de Economia Solidária (NESOL-USP) e da Feira Agroecológica e Cultural de mulheres no Butantã, retomou a trajetória da incubadora desde seus empreendimentos iniciais como a CooperBrilha (1998) e o Centro de Segurança Alimentar do Jardim Jaqueline (2006), comentando sobre os problemas enfrentados por eles e a dissolução da proposta original, que era a contratação pela universidade dos serviços prestados por empreendimentos autônomos incubados pela ITCP. 

Paolo também enfatizou as dificuldades enfrentadas pela incubadora, em especial nos tempos atuais, com o fim das políticas públicas de economia solidária, as restrições no orçamento da universidade e a constante dificuldade de atuar sem uma equipe de trabalho contratada e com participantes transitórios. Defendendo a existência de um projeto permanente de ensino, pesquisa e extensão da USP ligado à incubadora e localizado no território do Butantã, Paolo defendeu a integração da universidade às lutas populares que ocorrem no seu entorno.

Ao abordar os desafios dos empreendimentos nos quais participam pessoas com grande dificuldade de acesso ao trabalho formal, Paolo destacou a necessidade de se criar condições para a viabilidade econômica dos empreendimentos. E, nesse sentido, enfatizou a importância de fortalecer o diálogo que constrói pontes entre produtores e consumidores.

Concluindo, Paolo evocou a territorialidade naquilo que ela representa de conquista e pertencimento a um espaço. Como nos disse, é uma questão básica dos empreendimentos encontrar um lugar para produzir, expor e comercializar sua produção fora das opções convencionais, já que dificilmente estas seriam alternativas viáveis.  Sendo assim, Paolo considera o Ponto de Economia Solidária e a Feira Agroecológica duas importantes conquistas territoriais. E lembra da importância de se refletir sobre o Butantã enquanto um território com o qual as pessoas de fora dele também possam se identificar:

“(… ) Do meu ponto de vista, o Ponto de Economia Solidária, assim como a Feira Agroecológica de Mulheres, é uma conquista territorial. Ele traz como princípio esse olhar sensível para a questão das desigualdades. (…)  E aí é onde o Butantã se torna um território não exclusivo dos butantenses, mas um território onde as pessoas de outros territórios possam encontrar territorialidade”.

E então…

Após todos os convidados terem apresentado suas experiências, os participantes comentaram sobre a importância de eventos como este, que resgatam memórias e abrem oportunidades de articulação e fortalecimento coletivo. Destacaram também a riqueza e o potencial do encontro, abordando seu caráter estratégico na manutenção e na ampliação de redes solidárias. A aproximação entre associações, coletivos, estudantes e professores da USP também foi elogiada.

A oficina nos mostrou a importância da construção da memória coletiva na afirmação da dimensão humana, simbólica e espacial do território. Revelou histórias e testemunhos entrelaçados em um mapa que expressa não somente as transformações passadas, mas também as  futuras, projetadas, desejadas. Um mapa que reuniu o que foi e o queremos que seja esse território.

Nesse mapa muita gente pode ser somada. Gente que transborda sua biografia para a vida em comum. Gente que combate com consciência as diversas faces das desigualdades e opressões urbanas. Outros movimentos sociais, coletivos da juventude, pessoas que resistem à dispersão e à homogeneização da vida… são muitos. Sigamos criando encontros!