Oficina com as trabalhadoras e trabalhadores do Ponto de Economia Solidária e Cultura do Butantã
A participação das trabalhadoras e trabalhadores do Ponto no projeto de cartografia social foi estimulada em todas as suas etapas. Sentamos com o grupo para apresentar os mapas e conversar sobre as possibilidades de interação com eles, pensamos coletivamente formas de incentivar o público a interagir com os mapas e estimulamos a participação do grupo no planejamento e realização das oficinas temáticas. Além desse envolvimento ao longo do projeto (na interação cotidiana com os mapas, nas atividades de planejamento de atividades e nas próprias oficinas), buscamos também realizar uma oficina específica com o grupo de trabalhadores para escutarmos suas impressões e avaliações do projeto como um todo. Também buscamos aproveitar esse encontro para organizar uma dinâmica de interação com os mapas que pudessem estimular uma discussão sobre saúde, trabalho e vida na cidade a partir das experiências do grupo. Como as pessoas que trabalham no equipamento vivenciam esses assuntos e como eles se articulam na biografia de cada um? Como se relacionam com seus projetos e com as atividades realizadas no Ponto?
Antes de começarmos a oficina, havíamos pesquisado o endereço residencial de cada um dos participantes e fixamos o pictograma [1] das casas de cada um no mapa. Como tínhamos pouco tempo para desenvolver o trabalho (aproximadamente duas horas) pensamos que a localização do Ponto e da residência de cada um no mapa facilitaria o trabalho que iríamos propor. Como afirmado acima, os mapas não eram uma novidade para os participantes, mas a proposta de atividades para interagir de forma mais pessoal com os mapas seria sem dúvida uma novidade.
Organizamos inicialmente uma roda de apresentação de todos os participantes (aproximadamente vinte, entre trabalhadores, técnicos e estagiários). Depois disso, explicamos a proposta da oficina e apresentamos os pictogramas. Encerrada a explanação inicial, pedimos que se deslocassem para a frente do mapa e tentassem localizar onde estavam suas casas e qual era o itinerário que realizavam até o Ponto. Uma primeira roda de conversa se formou. Muitos tiveram dificuldades de se localizar no mapa e isso gerou inicialmente risos. À medida em que iam se localizando, algumas vezes com nossa ajuda, imediatamente começaram a observar o percurso de deslocamento até o Ponto e a comparar distâncias percorridas e a distância entre as casas. Foi possível observar o início de um processo de troca de informações apoiado no mapa e o interesse por conhecer a realidade de cada um.
Depois dessa interação inicial, as pessoas passaram a utilizar os diversos pictogramas apresentados. Experiências significativas para cada um foram compartilhadas, como espaços culturais e de lazer, parques e restaurantes frequentados. Algumas pessoas comentaram nesse momento que percebiam a diferença entre a quantidade e a diversidade de opções de lazer nos diferentes espaços da cidade. Muitos trabalhadores apontaram as igrejas que frequentam, indicando a importância da religiosidade para grande parte do grupo. Percebemos que o mapa do Butantã passa a significar “território Butantã”, não mais somente uma primeira imagem, mas sim uma representação do imaginário individual e coletivo, revelando como estes trabalhadores se movem, como usam e o que experienciam da cidade, ou seja, um processo de viver e transformar o território a partir do cotidiano.
Quando o tema da saúde foi abordado, muitas impressões interessantes foram compartilhadas. A discussão sobre os equipamentos frequentados (como UBS, AMAs e CAPS) e os espaços de apoio com o qual contaram ou ainda contam, mobilizou muito o grupo. Nesse quesito, o Ponto de Economia Solidária se destacou. Foi apontado com um importante espaço reorganizador dos projetos de vida. Depois de compartilhadas as experiências pessoais e as trajetórias particulares, alguns participantes chamaram a atenção para a diferença na distribuição dos equipamentos de saúde pelo território. A análise dessa distribuição permitiu observar a concentração dos equipamentos em áreas mais centrais e a diminuição deles nas áreas periféricas.
Algumas questões urbanas foram apontadas e analisadas pelo grupo ao longo da oficina. Uma delas foi desencadeada após uma fala sobre a diferença da distribuição das áreas verdes no território do Butantã. Outra pessoa complementou e lembrou de algumas transformações do espaço urbano que não respeitavam a preservação de áreas verdes. Nessa segunda fala, a participante enfatizou que as construções ocorridas nas regiões periféricas do Butantã, além de destruir áreas verdes, determinaram o início de alagamentos em áreas onde antes não ocorriam. Foi interessante observar como a lembrança do processo de transformação da região permitiu a análise de um problema, no caso, de drenagem, importante para a população.
Perto do final da oficina, o tema da participação no Ponto foi trazido para reflexão. Ficou evidente a importância que o equipamento tem na vida das trabalhadoras e trabalhadores. Alguns participantes enfatizaram como conheceram novas pessoas, novos espaços da cidade, novas experiências culturais e de trabalho. Outro aspecto importante mencionado foi o envolvimento com novas iniciativas comunitárias, como movimentos de agroecologia e de economia feminista. De forma geral, enfatizaram o ganho de autonomia gerado pela participação nesses espaços. O Ponto é apontado como referência central na organização dos atuais projetos de vida.
A luta antimanicomial no Brasil tem como um de seus principais objetivos questionar e transformar o modelo de atenção à saúde mental baseado na internação e na consequente exclusão social das pessoas que vivenciam sofrimentos psíquicos. Buscamos neste trabalho seguir e desenvolver a visão de atendimento que engloba a relação da saúde mental com os direitos fundamentais, como o direito à cidade e ao trabalho digno. A equipe interdisciplinar do Instituto de Psicologia, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e da Faculdade de Terapia Ocupacional testou durante este ciclo de trabalho formas coletivas de construção de conhecimento e possibilidades de interação entre espaço mental e urbano neste laboratório experimental que é o Ponto.
Ao mesmo tempo quando pensamos nas lutas pelo direito à cidade que reuniu e organizou gerações de arquitetos e urbanistas, podemos perceber que suas propostas estão relacionadas a uma visão sobre saúde mental, uma visão sobre como a organização do espaço urbano pode melhorar a vida das pessoas. A visão de uma cidade aberta e democrática se relaciona de maneira evidente com uma política de saúde que questiona o modelo de atendimento centrado apenas no indivíduo, como se não existissem condicionantes sociais e políticos de promoção ou de impedimento da saúde.
A luta antimanicomial propõe uma mudança de paradigma no cuidado à saúde mental e um esforço para garantir plenamente os direitos das pessoas com sofrimentos psíquicos. Essa luta envolveu no Brasil, a partir da reforma psiquiátrica, a substituição progressiva de leitos psiquiátricos por uma rede integrada e comunitária de atenção psicossocial. A história desse movimento mostra que muitas experiências foram e continuam sendo desenvolvidas na construção de um modelo substitutivo, envolvendo o diálogo com os atores e movimentos sociais engajados na reforma psiquiátrica. O Ponto de Economia Solidária do Butantã reflete de alguma forma essa história de acúmulo de experiências e discussões que buscaram relacionar saúde mental, economia solidária e outras políticas públicas, como as iniciativas anteriores de geração de renda nos CAPS, os projetos desenvolvidos nos CECCOs, as propostas construídas na Rede de Saúde Mental e Economia Solidária e as lutas para a construção de uma legislação adequada em relação ao Cooperativismo Social [2]. Esses avanços, acúmulos e articulações se encontram hoje seriamente ameaçados. A luta antimanicomial foi e continua sendo um movimento científico e político de luta e resistência contra os interesses e forças sociais que insistem em manter a lógica manicomial em funcionamento. Nesse momento estamos assistindo a muitos retrocessos, como indica o Relatório de Inspeção Nacional em Hospitais Psiquiátricos no Brasil publicado pelo Conselho Federal de Psicologia em dezembro de 2019 [3]. Esses dados revelam a importância de manter viva a luta antimanicomial e de avançarmos na construção dessa rede de atenção psicossocial.
O movimento antimanicomial esteve articulado desde o início a outras lutas por democratização e por garantias de direitos. Ele parte da compreensão de que promover saúde mental é lutar contra formas de desrespeito, discriminação e humilhação social que se materializam na organização do trabalho social e na produção da cidade. Acreditamos ser esta a principal justificativa para a articulação entre a política de saúde mental, a luta pelo direito à cidade e o movimento da economia solidária. A saúde mental está acima de tudo relacionada à construção de espaços de participação igualitária na cidade e no trabalho.
[1] Alguns dos pictogramas utilizados

[2] O site da Rede de Saúde Mental e Solidária apresenta vários textos e documentos analisando a história da luta pela construção de uma política e legislação adequadas do Cooperativismo Social. Os textos podem ser encontrados no site: http://saudeecosol.org/
[3] https://site.cfp.org.br/inspecoes-mostram-a-gravidade-da-situacao-encontrada-nos-hospitais-psiquiatricos-do-brasil/