Viagem Sítio Santa Bárbara e Mãe Terra, assentamentos MST – IPERÓ, Sorocaba, S.P.
Nos encontramos no Ponto de Economia Solidária do Butantã, bem cedinho. Éramos 16 participantes, duas pesquisadoras da USP, Maria de Lourdes (docente) e Stephanie (graduanda), duas gestoras do ponto, Tissi e Marta e 12 trabalhadores do Ponto, Ana Lucia, Bruna, Daniela, Gildasio, Gleidson, Isabel Cristina, Luciana, Maria Batista, Maria José, Risonete e Roberto Raimundo. A sensação que pairava entre nós era de festa, muita alegria e curiosidade com o que iríamos vivenciar. Alguns chegaram bem mais cedo, outros se atrasaram pelas dificuldades com o transporte público, são poucos que moram perto do Ponto.
O objetivo da viagem foi possibilitar o nosso contato com a origem dos alimentos orgânicos que são vendidos no Ponto – a forma de produção e a organização social destes produtores, ou seja conhecer a cadeia produtiva de ponta a ponta. Isso implica, conhecer de onde vem esses alimentos, e qual a história daqueles que plantam, como plantam, e também onde plantam. A viagem foi uma visita para o sítio Santa Bárbara, do assentamento Ipanema, e o sítio Mãe Terra, do assentamento Bela Vista, ambas as terras conquistas e frutos da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Todos instalados na van da Universidade de São Paulo, partimos. O clima era de alegria, com muitas conversas e cantos que demonstravam a curiosidade do que viria . A paisagem ia se transformando na medida em que íamos nos afastando do Butantã e nos aproximando do limite do perímetro urbano da cidade de São Paulo – a densa periferia se diluindo nas áreas rurais enquadradas nas janelas quase panorâmicas da van, num verde brilhante característico de um dia ensolarado.
“Olha só, pessoal, nós da Luta Antimanicomial já fechamos vários manicômios em Sorocaba. Agora retornamos para lá num contexto completamente diferente”
Ao ver uma placa indicando Sorocaba, Risonete, uma trabalhadora e usuária do Ponto de Economia Solidária, chama a atenção de todos os presentes: “Olha só, pessoal, nós da Luta Antimanicomial já fechamos vários manicômios em Sorocaba. Agora retornamos para lá num contexto completamente diferente”. Depois de um silêncio todos começam a falar e contar alguma coisa da sua luta pessoal. Tissi, a técnica do Ponto pontua a fala da Risonete:
“Que legal, né, pessoal. Vocês estão indo para Sorocaba, mas não para serem internados”

Risonete nos traz à memória uma parte muito sombria da história da assistência à saúde mental do nosso país, que parte de um contexto de exclusão e isolamento. A luta antimanicomial surge no contexto em que as práticas de exclusão e controle se davam àqueles que não se adequavam a normalidade vigente. Ou seja, se ancoravam numa moralidade ditada pela ordem e pelo trabalho produtivo, e também no saber médico cuja leitura classificatória subtraía a subjetividade e contexto sócio histórico dos sujeitos, e como consequência fez com que a loucura se instituísse nos manicômios e que os manicômios se instituíssem na loucura. A luta antimanicomial é um movimento social que teve sua gênese em consonância com o Manifesto de Bauru, que foi um documento que funda esse movimento devido a sua crítica às formas de tratamento da loucura, propondo uma discussão no campo da saúde mental que caminha para além do assistencialismo, da exclusão, da violência e da estigmatização do “louco”.
Como equipamento da Secretaria Municipal de Saúde, o Ponto desenvolve iniciativas de trabalho para usuários da rede de atenção psicossocial e pessoas em condição de desvantagem social, como a venda de produtos orgânicos, de livros e de artesanato, reuniões de equipe para planejamentos, assembléias, etc. Estas iniciativas se desenvolvem através de outra forma de organização, definidas e organizadas sob a forma da economia solidária. O trabalho realizado pelos usuários do Ponto é centrado na inserção social do trabalhador, com a proposição de que ele possui um lugar importante no campo da saúde mental, ou seja, no tratamento dos usuários e na geração de renda.
Neste contexto a viagem segue com o objetivo conhecer a cadeia produtiva que antecede ao trabalho do Ponto. Os trabalhadores do Ponto puderam conhecer de onde vêm aquilo que é vendido na seção de orgânicos, de onde vêm parte da matéria prima de seu trabalho de cada dia, ou seja, parte daquilo que faz alguns se levantarem pela manhã, tomarem o transporte e irem para o trabalho.
E, diferentemente nesse dia, a ida ao interior não teve como intenção a internação manicomial, nem o tratamento psiquiátrico, senão colocá-los em posição de cidadãos trabalhadores que estão indo conhecer uma parcela da cadeia de produção daquilo que vendem. Isso também constitui a Luta Antimanicomial, atualizando-a a cada dia.

Seguindo viagem começamos nossa aventura ao entrar numa estrada de terra com o veículo urbano, que para nossa sorte não estava molhada, conseguindo manter nosso trajeto. A estrada era estreita, de paisagem rural: cercas de madeira, arame farpado, grama alta, vacas pastando. Todos olham prontamente para a vaca que chama a atenção e uma parada se fez obrigatória para uma fotografia. A Tissi diz:
“Vocês só vêem a carne no açougue, né, gente? Ta aí o bichinho inteiro”.

A primeira parada da viagem foi o sítio Santa Bárbara no Assentamento Ipanema. Para contextualizar este lugar segue um breve recorrido da história de sua ocupação. O Sítio Barbará está localizado no Assentamento Ipanema. A Área foi ocupada em 1992 quando cerca de 800 famílias organizadas pelo movimento sem-terra chegaram em Iperó para ocupar parte da Fazenda Ipanema. Não era uma época de grandes ocupações pela reforma agrária. Alguns sindicatos e outras organizações deram apoio, em Iperó, para a ocupação, ofereceram caminhões, materiais alojamentos, alimentação e medicamentos. Ficaram lá até 1996 quando é criado o assentamento pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), apenas 150 famílias resistiram nestes 4 anos. Atualmente o assentamento está implantado e produzindo, as famílias têm concessões de uso da terra por tempo indeterminado e acesso a créditos para infraestrutura rural pelo Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Hoje, são 150 lotes sendo 30 agroecológicos, certificados desde 2002. Organizam-se por meio de cooperativas e/ou associações e produzem principalmente para o Programa Nacional de Alimentação Escolar e Programa de Aquisição de Alimentos, com foco na produção agroecológica.

Chegando ao Santa Bárbara, Francisca e Edson nos receberam com um café da manhã preparado, com alimentos orgânicos provenientes do sítio.
Nos mostraram as plantações de feijão, maracujá, palmito de pupunha, limão e goiaba.

A conversa flui entrelaçando suas histórias de vida e de luta com as da ocupação e permanência no assentamento. Estávamos sentados na varanda em volta da mesa de café, outros em pé no quintal, quando a Francisca nos fala “Tudo começa pela casa, começa pela varanda. Mas podia ser mais alta e maior”, uma forma afetuosa de nos acolher e nos abrigar na sua história.
Contam algumas dificuldades enfrentadas, como por exemplo as geadas, que podem provocar a perda de toda a plantação de algum alimento – ou seja, a perda de muito trabalho diário. Utilizam inseticida natural proveniente das folhas da árvore primavera pau-d’alho e da mamona para cuidar da plantação. Contam a história de conquista da terra, que se inicia com a ocupação da fazenda em 1992, com mais outras 150 famílias, e que após algumas famílias conseguirem as terras o movimento se desmobilizou.
Um dos problemas foi como distribuir os alimentos produzidos nessas terras, e atualmente, uma grande questão é como conseguir vender orgânicos para a população mais pobre e de classe média. Chamam a atenção para as dificuldades da reprodução da vida, pois as políticas públicas a partir de 2017 não chegam mais aos assentados, do crédito à assistência técnica.

A segunda parada da viagem foi no sítio Mãe Terra, assentamento Bela Vista MST.


Chegamos ao Sítio Mãe Terra fomos recebidos por Maria e Willian que logo nos convidou para flanar pelas trilhas do quintal entre crias, temperos e frutíferas. Nos espalhamos aleatoriamente e começamos a explorar os quintais, a curiosidade se aguçava passo a passo para saber o que era cada plantio e para que servia. Logo somos chamados para o almoço.
Maria e William prepararam um almoço vegetariano com alimentos orgânicos. Eles nos contam a história de lutas naquela terra sob a sombra das árvores do quintal, junto de uma bandeira do MST. Dizem que anteriormente se utilizavam de insumos na terra, e que a luta pelos alimentos orgânicos ocorreu num momento posterior. A comercialização de sua produção ocorre em parceria com a Universidade Federal de São Carlos, a Comunidade Sustentável de Agricultura (CSA).
Os trabalhadores do Ponto se apresentam para Maria e William, contando ou não o que os fizeram chegar no Ponto. Uma das trabalhadoras diz das atividades e grupos de trabalhos existentes no Ponto, e traz a dificuldade enfrentada por eles para sensibilizar os frequentadores à compra dos orgânicos, e de pensar, juntos, como esses alimentos podem atingir a classe trabalhadora. Assim como Maria também nos diz, a agroecologia não é só plantar, é também chegar na mesa do trabalhador (sic). Ela também nos conta que por ter conquistado a terra junto dos companheiros de luta, a devolutiva a ser oferecida é o alimento saudável, oferecer um mundo diferente. O uso de agrotóxicos está envolvido diretamente com a produção capitalística capitalista? do alimento, e que é mais fácil para o produtor matar a formiga do que manejar ela (sic). Assim, Maria e William narram a história de luta diária para resistir ao uso de agrotóxicos, dos cuidados com a terra e o plantio e, sobretudo, da ética que os guia: fazer o alimento saudável atingir a população.
“A agricultura agroecológica e a permacultura nascem no mesmo contexto da apropriação da indústria dessa cultura, de dentro pra fora, no uso de veneno”

Em ambos os sítios pudemos escutar sobre a importância das políticas públicas na trajetória de viabilização do projeto dos assentamentos, como o financiamento de mudas e tratores pelo Banco Mundial, e de cursos de agricultura agroecológica pelo Pronera, que uniu o conhecimento popular com o conhecimento científico para serem aliados à produção agroecológica. Há também a imensa dificuldade em resistir ao uso de agrotóxicos devido à falta de investimentos na agricultura orgânica.
O que outrora uniu as famílias foi o objetivo da conquista da terra, hoje é a necessidade de resistir ao uso de agrotóxicos e de proteger a terra do agronegócio, desflorestamento e da estrutura neoliberal de tomada da terra. Também nos trazem que é a partir da varanda da casa e do quintal que a luta se fortalece, por se tratar de uma luta pela vida. É a partir dos quintais que urge a produção de saúde e agroecologia, e também onde que se produz o fortalecimento da luta que fora inicialmente pela terra, e hoje é pela manutenção e distribuição do alimento orgânico.
A distribuição dos alimentos de ambos os sítios é feita pelo Terra Viva, uma cooperativa que faz a logística do alimento do produtor chegar na mesa do trabalhador. É através da rede de comércio solidário que esses alimentos chegam em São Paulo, e consequentemente, no Ponto de Economia Solidária do Butantã.
Mais um ponto no aprendizado sobre a cadeia produtiva dos produtos vendidos no Ponto.

O resultado do esforço de integração dos trabalhadores no torvelinho do mundo real se mostra também em seu espírito crítico. No retorno para São Paulo, trabalhadores do Ponto comentam que o valor a ser pago pelo almoço e o café da manhã na viagem tinha sido alto, expondo sua apreensão das dificuldades enfrentadas pela Economia Solidária (e, consequentemente, pelo Ponto, em manter um equilíbrio entre suas propostas e as possibilidades) em remunerar os trabalhadores. A venda dos alimentos orgânicos e seu preço mais elevado que o dos alimentos não orgânicos, acaba por não ser acessível à classe trabalhadora, um fator importante para que o valor da alimentação oferecida nos locais visitados fosse considerado elevado. Esse impasse movimenta a luta, uma vez que uma das grandes intenções é que a alimentação de qualidade chegue às mesas dos trabalhadores.
O tempo urgiu e temos, então, alguns cochilos, algumas poucas palavras durante a viagem silenciosa de retorno. Finalizamos em São Paulo quando já era noite. Todos alimentados com os produtos orgânicos que vendem dia após dia. Numa viagem, muita coisa flui e pouco permanece o mesmo, e nem nós que, agora, conhecíamos os assentamentos onde germinam os produtos vendidos no Ponto. Percorremos terras antes desconhecidas por nós, histórias e memórias de resistência diária, tudo em torno do alimento – aquele que separa, mas também une. Chegando ao Ponto de Economia Solidária, nós éramos aqueles que conheceram uma cadeia produtiva que perpassa do território de Iperó ao Butantã. O segurança do Ponto abre as portas, tiramos uma foto juntos em frente ao equipamento público e, então, nos despedimos mais uma vez.

Assim já ninguém chora mais (autor: Zé Pinto)
Sabemos que o capitalista
diz não ser preciso
ter Reforma Agrária
Seu projeto traz miséria
Milhões de sem terra
jogados na estrada
com medo de ir pra cidade
enfrentar favela (1)
fome e desemprego
Saída nessa situação
é segurar as mãos
de outros companheiros.
E assim já ninguém
chora mais
ninguém tira o pão
de ninguém
chão onde pisava o boi (2)
é feijão e arroz,
capim já não convém.
Compadre junte ao Movimento (3)
Convide a comadre
e a criançada
Porque a terra só pertence
a quem traz nas mãos
os calos da enxada
Se somos contra o latifúndio
da Mãe Natureza
Somos aliados
E viva a vitória no chão
Sem a concentração
dos latifundiários.
Seguimos ocupando terra
derrubando cercas (4)
conquistando o chão
Que chore o latifundiário
pra sorrir os filhos
de quem colhe o pão
E a luta por Reforma Agrária
a gente até pára
se tiver, enfim
coragem a burguesia agrária
de ensinar seus filhos a comer capim.